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A onda Bolsonarista aos olhos de quem viveu Pinochet

*Texto escrito em 2018 antes das eleições presidenciais. 

Nascido durante a ditadura de Augusto Pinochet, que durou de 1978 a 1990 no seu país, o chileno Esteban de La Hoz não veio ao Brasil motivado por ela. O caminho é praticamente inverso: escolheu o Rio de Janeiro, há 3 anos, amparado pela vontade de morar fora e imergir em uma nova cultura. Encantou-se pelo “povo alegre”, como o mesmo descreve, mas hoje vê parte do Brasil cair pelos encantos do que o desencantou durante a sua infância. “É difícil ver pessoas dizendo que a ditadura é boa. Não é assim, não. Para quem viveu, é difícil colocar em palavras. Esquecer é praticamente impossível”.

Aos 40 anos, Esteban roda a cidade do Rio de Janeiro como motorista particular de aplicativo de celular. Nos quilômetros feitos durante as horas de trabalho, deixa para trás as memórias dos seus primeiros 12 anos vividos sob o regime ditatorial de Pinochet, visto como uma das figuras mais cruéis da história da América Latina. “A gente não podia falar livremente, existia toque de recolher depois das 21 horas, não podia sair de casa, liberdade de imprensa não existia”, relata. A descrição não foge dos retratos das ditaduras que assombraram a América do Sul durante as décadas de 60 e 70, inclusive no Brasil, o que desperta ainda mais curiosidade no chileno. “Eu não consigo esquecer os caminhões dos “milícias” passando depois das 21 horas, nós todos em silêncio e na escuridão para nada ruim acontecer. Como alguns brasileiros podem lidar com isso?”.

No ano de 1973, o Chile era governado por Salvador Allende, socialista eleito pelo povo. Um pouco antes da sua eleição, o país já apresentava graves questões econômicas: era dependente de investimentos externos, possuía altos índices de desigualdade social e uma significativa parcela da população vivia em situação de pobreza. Allende chegou ao poder, apoiado pela Unidade Popular formada por partidos de esquerda, com o intuito de governar através de reformas socialistas e, assim, promover o crescimento econômico. As medidas, no entanto, não foram bem aceitas pelas Forças Armadas chilenas, pelo meio empresarial e pelos Estados Unidos. Em 1973, a situação se agravou e a insatisfação tomou conta do governo de Allende. Foi a brecha esperada para as Forças Armadas, que, através de um golpe de Estado, derrubou o então presidente e bombardeou o Palácio de La Moneda, sede do governo. Antes de ser preso, Allende se suicidou. Era o início da ditadura militar chilena.

Dos candidatos à presidência, Bastian Rivera, chileno de 21 anos, que também vive no Rio de Janeiro, só conhece Marina Silva (REDE), Ciro Gomes(PDT) e Jair Bolsonaro (PSL). Para ele, os dois primeiros seriam boas respostas para a onda de “conservadorismo e medo” que o jovem chileno acredita está passando pelo Brasil. Já Bolsonaro, ele se refere como um “safado” que “faria o mesmo que Pinochet, se estivéssemos em 71”.

Bastian parece não ser o único a pensar dessa forma: a revista britânica, The Economist, comparou o candidato à presidência do PSL, em sua edição de setembro, a Augusto Pinochet, referindo-se a ele como “a ameaça à ditadura mais recente na América Latina”. Para Bastian, os meios de governo de Bolsonaro são muito semelhantes ao do ditador. “Não dá para saber o que vai acontecer com ele no poder. Isso de violência para combater violência não dá certo não, te digo. O cara tem a mesma ideologia que Pinochet. Ele quer combater a delinquência do mesmo jeito que Pinochet fazia”. O vice de Bolsonaro, o general Antônio Hamilton Mourão, já falou publicamente sobre uma possibilidade de intervenção militar. No entanto, três das autoridades mais importantes do meio militar afastam a possibilidade.

Não há nenhuma suspeita concreta de que o Brasil venha a viver um novo regime ditatorial. O medo, que tanto assombra a corrida presidencial de 2018, parece caminhar de dois lados: próximo aos que não querem a continuidade dos dias atuais, regados à insegurança pública e desemprego, e aos que não querem reviver os dias passados, reconhecidos pela intolerância e censura. Para quem viveu o regime ditatorial sob o comando do ditador tão homenageado pelo candidato líder das pesquisas políticas, assombra a possibilidade de caminhar pelas ruas brasileiras e esbarrar em dias passados. “Fico muito triste. O Bolsonaro falando isso aí… Ele diz que a ditadura é boa, mas não é assim. A evolução do Chile começou quando a democracia chegou”, relata Esteban. Mas, não é apenas o militar da reserva que traz insegurança. “Ver a população ter os mesmos pensamentos racistas e homofóbicos que ele é de amedrontar”.

As diferenças pós-ditadura entre Brasil e Chile

Nas décadas de 60 e 70, países da América do Sul foram apresentados aos regimes ditatoriais. Como uma grande onda capaz de cobrir o continente, os golpes militares foram passando pelo Brasil (1964), Argentina (1966), Peru (1968), Bolívia (1971), Uruguai (1971), Equador (1972) e Chile (1973). A Colômbia, embora não vivesse sob um governo militar, presenciava, simultaneamente, a guerra civil entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN). Os motivos para se chegar ao golpe variavam de uma fronteira para a outra, movidos, em boa parte, pelo medo do comunismo, como no Brasil e no Chile. O tratamento para com aqueles considerados opositores, no entanto, era comum nos países: perseguição, intolerância e censura que culminou em desaparecidos, presos e mortos políticos.

Se a entrada em ditaduras se deu praticamente em conjunto, a reabertura democrática seguiu pelo mesmo caminho: os anos de 1980 e 1990 foram marcados pela redemocratização. Em seguida, era tempo de investigar e culpar os responsáveis pelos crimes cometidos durante os períodos ditatoriais. A forma como as nações sul-americanas trataram essa terceira fase divergiu tanto em tempo quanto na forma com a qual os crimes eram vistos. “A Comissão da Verdade e Reconciliação no Chile foi estabelecida logo após o fim do regime militar, em 1990. Bem diferente do Brasil, que o fez aproximadamente 25 anos depois. Logo, a CVR do Chile fortaleceu a reinstalação democrática empoderando instituições e a própria população”, explica Gabriel Mattos, professor e historiador formado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Para ele, a diferença de datas entre os dois países explica a forma como a própria população e os militares enxergam o período ditatorial. “Por conta disso, a pressão popular no Chile é mais respaldada. Isso culminou, junto a outros fatores, com uma política chilena bem diferente da nossa, que parece ser mais acomodada”.

As diferenças entre a forma com a qual as Forças Armadas, a justiça e a própria sociedade tratam os anos em que viveram sobre regime militar fica ainda mais evidente se compararmos Brasil e Chile. No Brasil, a Lei da Anistia, promulgada em 1979, impede até hoje que os responsáveis por crimes como tortura, execução e desaparecimento sejam julgados. No Chile, alguns de seus torturadores morreram na cadeia ou vivem lá até hoje. Para o chileno Esteban de La Hoz, ainda assim, o sentimento de injustiça é uma nuvem a pairar sobre as terras chilenas. “Para os chilenos, a ditadura militar é um assunto não resolvido porque o Pinochet morreu sem ser punido. Ainda há a sensação de injustiça para aqueles que sofreram ou ficaram desaparecidos e para as suas famílias que até hoje não sabem o que aconteceu com eles”.

Para o historiador Gabriel, o sentimento de “ordem pública” é o principal responsável pelo saudosismo de parte dos brasileiros. “Naquela época, tinha-se a impressão de que as desordens sociais eram mais punitivas. O legítimo uso da força praticado pelo estado garantia, naquela época, uma sensação de segurança e ordem pública. O contexto atual que vivemos, com foco em violência e desemprego, faz com que essas pessoas pensem que é necessário um estado mais forte e presente”.

“Pinochet devia ter matado mais gente”, “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, “Sou capitão do Exército, minha missão é matar”. Estas são frases proferidas, em diferentes ocasiões, pelo militar da reserva, político brasileiro e líder das pesquisas para Presidência do Brasil, Jair Bolsonaro. Rosto comumente ligado ao exército brasileiro, Bolsonaro não poupa elogios quando o assunto é o golpe militar brasileiro — o qual ele se refere como “revolução”. Seu vice, o também militar General Hamilton Mourão, compartilha o mesmo sentimento e já relativizou o período ditatorial do Brasil em aparições públicas. “A diferença entre a forma com a qual as Forças Armadas tratam o mesmo período é outra importante diferença entre Brasil e Chile. Lá, os militares reconhecem os crimes cometidos, a Força Aérea já cumpriu sentença emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e não à toa o chefe da polícia secreta durante a ditadura, Manuel Contreras, morreu na prisão”, lembra Gabriel.

Perguntado se sabia sobre o saudosismo de Bolsonaro e seu vice sobre o regime ditatorial de Pinochet, Bastian respondeu: “sim, eu soube”, mas preferiu não se prolongar no assunto, “me gera muita pena isso. No Chile, a gente tenta não falar sobre. Quando tua família é afetada diretamente é melhor não lembrar, né?”.