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Você conhece o Congo?

*Texto escrito em 2018. 

Moise Boele, congolês de 22 anos, sai do Bloco C da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, calçando uma calça e blusa preta e tênis incrivelmente brancos que parecem resistir ao chão de terra da universidade. Ele brinca quando uma menina passa dizendo que sua roupa parece com a de seu cantor favorito, um rapper congolês. A paisagem que beira a Baía de Guanabara pouco se assemelha ao de grande parte do seu país, principalmente as áreas que se tornaram zonas de conflito desde os anos 90. Residente no Brasil há 3 anos, o máximo de conflito que Moise participa é nas discussões entre a Chapa 1 e a Chapa 2, que divergem quanto ao poder do Diretório Acadêmico. Com o adesivo da Chapa 1 colado ao peito, ele começa a caminhada política de quem sonha em voltar ao Congo e chegar ao máximo poder. “Vou mudar aquilo lá. Guarda essa entrevista, vai valer muito depois”, diz sorrindo.

É no Bloco C que fica o instituto de letras da UFF, onde Moise cursa a graduação em português e ensina francês, idioma oficial da República Democrática do Congo, pelo PROLEM (Programa de Línguas Estrangeiras Modernas proporcionado pela universidade). Nadando contra a corrente das milhares de crianças, homens e mulheres que saíram da RDC nos últimos anos, Moise não veio ao Brasil como um refugiado. O congolês do sorriso solto é um ponto fora da curva no país. E reconhece: “Eu tive a oportunidade de vir estudar no Brasil por conta do que o meu pai é no Congo. Eu conheço gente que estudou comigo, que é muito mais inteligente do que eu, mas não teve a mesma oportunidade porque não tem acesso a mesma informação que eu tive. Eu acho isso muito errado”. Seu pai é um militar que começou a carreira em 1997, após o primeiro golpe de estado que depôs o presidente e ditador Mabutu Sese Seko (1965–1997). Segundo o filho, a partir de então, ele formou uma carreira consolidada e se tornou influente dentro do exército.

O jovem congolês chegou ao Brasil através de uma bolsa de estudos chamada PEC-G (Programa de Estudantes Convênio de Graduação), que ajuda a trazer jovens imigrantes até as universidades públicas brasileiras. Antes do país sul-americano, passou seis meses no Marrocos, onde os planos não deram tão certos. “(no Brasil) Eu vim estudar português primeiro. Fiz uma prova, passei e já comecei na faculdade. Vim com uma vaga para computação na federal, mas troquei para letras porque gosto mais”. Além da condição do pai, Moise também teve a sorte de não viver em uma região conflituosa, no Nordeste do Congo. “Teve conflitos em 1997, quando ocorreu o golpe de estado e gerou guerra entre a gente e os ruandeses, mas, depois disso, não. Lá é mais tranquilo. A parte que mais tem problema são nas regiões onde se encontram nossos recursos naturais, como a matéria prima para fazer celulares”, conta.

O caminho de estudo e oportunidade percorrido pelo estudante de letras, no entanto, não condiz com as diferentes trilhas que milhares de congoleses precisam fazer anualmente atrás de uma tentativa de cruzar a fronteira. O agravamento da violência advindo dos conflitos internos entre tribos do Congo e países africanos, como Ruanda, faz mulheres, homens e crianças buscarem abrigo em outras nações, como Burundi, Tanzânia e Uganda. De acordo com a ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados, em fevereiro de 2018 quase 7000 congoleses cruzaram a fronteira com o Burundi, enquanto 1200 foram para a Tanzânia.

Na infância, antes do seu pai se consolidar no exército, Moise experimentou o que ele mesmo chama de “época mais obscura da vida”. A obscuridade se refere à pobreza que junto ao seu pai, mãe e irmãos precisou enfrentar. “Eu passei por situações como a de não ter o que comer. De verdade. Você sabe o que é não ter o que comer em casa? Eu ia para a escola a pé, precisava acordar 5 horas da manhã e ir andando. Passei por tudo isso. Apesar de hoje estar bem, sei o que é a pobreza congolesa”.

A entrada do pai para as forças armadas fez nascer um sonho no primogênito de 7 irmãos: ser presidente do Congo. Enquanto não estava na escola, Moise acompanhava o pai nos trabalhos administrativos no exército. “Quando comecei a trabalhar com ele, percebi as diferenças que existiam no Congo. As coisas boas e ricas simplesmente não eram repartidas para a população. Eu sabia que um dia teria que chegar ao poder para mudar a realidade dessas pessoas”. Ele ainda critica a atuação do governo atual e do próprio exército. “A gente está estudando para podermos levar o que aprendemos aqui para lá e fazer com que todo mundo tenha acesso a educação e saúde. Mas, é complicado. As pessoas que estão no poder estão lá trabalhando apenas para eles e suas famílias”.

A RDC é um país com abundantes recursos naturais, como o tântalo e o minério capaz de fazer funcionar os celulares — uma das principais causas de conflito, de acordo com Moise. A falta de perspectiva para o fim das batalhas entre as tribos, milícias e exército, que já perdura 20 anos, influencia diretamente na estruturação da sociedade. A ONG Entreculturas divulgou um relatório intitulado “Educação em Zonas de Conflito” que analisa a relação entre a educação, a exploração dos recursos naturais, a paz e o desenvolvimento sustentável. De acordo com os dados divulgados, zonas castigadas como a Kivu Norte, na RDC, sofrem um círculo vicioso: quanto mais conflito, menos educação e vice-versa. Em áreas do interior do país, a situação pode ser ainda mais precária e passam a se tornar, involuntariamente, mais suscetíveis à ação de grupos armados. “Uma pessoa que sai da capital (Kinshasa) e vem para o Brasil vai se assustar com algumas coisas, mas não vai sentir tanto. Já uma pessoa que sai do interior e vem para cá, vê uma mudança extrema. No Congo, há uma grande diferença de classe social de quem mora na capital para quem mora no interior. Neste, as pessoas não têm acesso às mesmas coisas de quem é de Kinshasa, como a educação”, explica.

O conflito civil no Congo teve origem no genocídio de Ruanda, em 1997, quando os hutus mataram aproximadamente 800 mil tutsi e hutus moderados, de acordo com os números divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Ao fim da guerra civil, os tutsi assumiram o poder e parte dos hutus fugiram para o Congo, que era governado, na época, por Mobutu Sese Seko. Apesar de viver uma ditadura desde 1965, para Moise, o país era um lugar muito melhor. “Para mim, o Congo não tinha os problemas que tem hoje, principalmente na segurança. Era um país na paz”. No mesmo ano, Mobutu foi forçado a se exilar através de um golpe de estado executado pelo líder rebelde Laurent D. Kabila, que passou a governar o país. Kabila, por sua vez, havia feito um acordo com Ruanda para conseguir chegar ao poder, mas se dissociou dos ruandeses encadeando uma guerra civil entre os dois países e outros, como Uganda, Burundi, Angola. Começava a Grande Guerra Africana, que durou de 1998 a 2003 e matou mais de 5 milhões de pessoas. Desde então, a região do Congo se tornou instável.

Até hoje, grupos rebeldes continuam provocando ataques ao governo sediado em Kinshasa. O maior agravante hoje está na rivalidade entre as tribos que convivem no mesmo território e proclamam pelo mesmo pedaço de terra e a disputa pelo comércio de recursos naturais. “Isso não vai acabar hoje, não. É impossível. É muito difícil essa guerra acabar. Tem muito corpo, sabe. Tem quem enriqueça atrás disso, até mesmo grandes potências ocidentais. É muito difícil, um processo muito longo”, desabafa Moses. De acordo com números da Igreja Católica, desde agosto de 2016 já morreram mais de 3000 pessoas na região do Congo e mais de um milhão precisou ser deslocada.

Além de toda a disputa pelo comércio legal e ilegal de recursos naturais e corrupção do governo congolês, Moise aponta para mais um agravante: o tribalismo. São mais de 200 etnias dentro do mesmo território. Ele e sua família pertencem à tribo tchokwe (pronúncia de tukuê). “O RDC é dividido em quatro grandes tribos. Dentro delas, são milhares de etnias que muitas vezes precisam conviver no mesmo território e não se olham com bons olhos”, explica. “Você vê o problema entre os tutsi e hutus. Nos afetaram diretamente. Já a partir de 94 tinha esse problema aí, devido a guerra de Ruanda. Até hoje tem esse problema interno entre esses dois povos que entraram na nossa terra e se juntaram. Um proclama uma parte, outro proclama a outra e criam rebeliões”. No entanto, ao ser perguntado como solucionaria o problema do tribalismo caso chegue ao poder do país, Moise abre um sorriso preocupado e desvia o olhar. “Ainda estou estudando sobre isso. Não começou hoje essa história, né? Tem muito tempo. Mas, estamos estudando para pelo menos tentar melhorar. A gente vai conseguir um dia”.

A ideia de tribalismo é tão forte e enraizado nos congoleses que, até no Brasil, eles involuntariamente acabam por se dividir em grupos. No Rio de Janeiro, os homens, mulheres e crianças vindos da RDC representam o maior grupo de refugiados do estado. Somente no primeiro trimestre de 2016, foram registradas 116 chegadas, o que, na época, representava 55% do total, de acordo com os dados da Caritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (CARJ). Eles estão concentrados, em sua maioria, no bairro de Brás de Pina, na Zona Norte do Rio. Moise explica que apesar do grande número de conterrâneos, ele tem poucos contatos. “Se aqui no Brasil tem o problema do racismo, a gente tem o problema do tribalismo. O povo também é dividido. Quem estuda fica mais com a galera que estuda, quem é refugiado fica mais entre eles. Eu até tenho amigos refugiados, a gente conversa e tudo mais, mas eu não conheço muitos aqui, não. Eu sei que tem, mas não tenho contato. Acabo fazendo amizades com pessoas de outros países, mas que são estudantes também”.

Após ser eleito presidente em 2006, Joseph Kabila, filho de Laurent Desiré Kabila, o responsável pelo golpe em 1998, tentou desmobilizar alguns grupos rebeldes e levá-los até o exército congolês, numa tentativa de unir forças. Mas, a decisão não foi bem vista pelo líder dos rebeldes: Laurenet Nkunda, que decidiu formar uma milícia para proteger a minoria tutsi. Desde então, vários acordos de paz estão sendo tentados na região, mas sem êxito. O maior tempo de trégua foi de janeiro a agosto de 2008. Moise ainda atenta para outro detalhe: a junção do movimento armado com o grupo terrorista Boko Haram. “Eles continuam os ataques ao governo até hoje, tentando tomar o poder. Não só ao governo, mas toda a população civil. É estupro de mulheres, assassinato de crianças”.

A decisão de estudar letras dialoga diretamente com a vontade de mudar a realidade do Congo. O estudante reitera que acredita ser pela educação o caminho mais fácil para mudar a situação do seu país de origem. Na política, ele defende o autoritarismo. “Em um país conflituoso e deficitário como o nosso, com pouca estrutura, você precisa de um líder. Você precisa do autoritarismo para que a sociedade se desenvolva. Vocês, brasileiros, têm uma visão sobre a ditadura e eu respeito. Mas, eu tenho outra”, defende.

Aliás, são com as crianças que vive outro sonho de Moses: arrecadar fundos para levar até os orfanatos no Congo que cuidam das crianças vítimas das zonas de conflito. Ele pretende voltar ao país de origem no ano que vem para visitá-las e ajudar. “Tudo depende das eleições. Se o candidato que meu pai estiver apoiando ganhar, eu vou em fevereiro. Se o outro ganhar, aí só em julho”. O estudante diz que já conseguiu contatos para fazer a publicidade do seu projeto intitulado Je Suis Utile (“Eu sou útil”, na tradução do francês para o português) em programas de televisão. “Alguns amigos aqui da universidade já disseram topar ir também, mas eu queria mesmo era conseguir ir no programa da Fátima Bernardes (jornalista e apresentadora do programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo). Dizem que ela é boa com isso, né?”. Para depois da formatura, seus planos são voltar para Congo e começar, com o diploma de professor, a tentar mudar o país antes de colocar os pés na política. Pergunto qual a sua previsão de formatura e ele, sorrindo, responde: “Se eu estudar direitinho, em dois anos. Se eu continuar indo para a cantareira (praça localizada em frente ao campus da UFF) beber, acho que uns três”.